por Marchesano
A ciência burguesa não é tola de negar a existência da fome, mas também não é tola para revelar a causa desta fome. Isto posto, toda fração dominante que se encontra no poder de uma determinada sociedade ocupando as cadeiras de comando, não pode exercer somente o protagonismo pela situação é preciso que ela se duplique para que também ocupe os espaços como oposição. Dito de outro modo, a burguesia ao criar as crises e distúrbios sócio-humanitários cria também, de modo consciente, seus respectivos quadros de oposição, os quais tergiversarão em cima das crises sociais a fim de encontrar uma “saída” ou um paliativo.
Os quadros “oposicionistas” são distribuídos segundo a espécie, a qualidade e a quantidade deles. A formação e distribuição desses quadros destina-se a hegemonizar o debate político em relação às crises e distúrbios sócio-humanitários, tanto pela esquerda como pela direita do espectro político burguês. Tudo isso tem um único objetivo: silenciar a classe antagônica à burguesia, a classe trabalhadora.
Observe como o problema da fome é colocado pelos analistas sócio-políticos da burguesia.
Segundo o IBGE, no ano de 2021, o Brasil alcançou a marca de mais de 214 milhões de habitantes. Segundo o instituto, do total da população, 46,8% se declaram pardos e 9,4% pretos. Ambos somados constituem 56,2% da população, formando, segundo o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), a totalidade de “negros” no Brasil.
Se apropriando desses cálculos, a OXFAM publicou o relatório Olhe para a Fome, apontando que há por volta de 120 milhões de pessoas em estado de vulnerabilidade alimentar no Brasil, das quais 20 milhões não têm o que comer.
Coincidência ou não eu não sei!
Segundo o relatório, o número de pessoas em estado de vulnerabilidade alimentar (120 milhões) corresponde à soma de pretos e pardos, ou seja, aos negros. Dito de outra forma, o número de pessoas em vulnerabilidade alimentar vai de encontro com o número da população negra no Brasil, 56,2%. E para maior efeito de retórica burguesa, o número de pessoas que nada têm para comer corresponde ao número de pretos no Brasil, 20.022.000 pessoas (9,4% da população total).
A partir desse artefato estatístico, a burguesia começa a produzir elementos para pautar os debates que serão realizados na mídia corporativa, nos círculos acadêmicos, nas organizações não-governamentais e afins. Com o discurso bem arranjado, a classe dominante passa a dirigir e a operacionalizar o problema da fome fundamentado, tão e somente, na questão racial, o que a possibilita desvincular o problema dos problemas político-econômicos por ela mesma realizados.
Consolidada essa forma de operação, a burguesia passa a hegemonizar o debate e a propor soluções. Ora ela se inclinará para projeções assistencialistas e paternais, ora para projeções “solidárias”, mas sempre desvinculadas de políticas públicas efetivas. No primeiro caso, a burguesia, por meio de seu Filantropismo, se confirma, uma vez mais, como classe dominante. No segundo, desobriga o Estado de intervir na situação.
A fim de superar esse embuste, precisamos retirar a maquiagem dos dados, colocada para encobrir a dura realidade dos trabalhadores brasileiros. Para superarmos este momento aparente é preciso mergulhar na essência do problema colocado. Podemos iniciar realizando a seguinte pergunta – Quem são as pessoas realmente vulneráveis dentro do modo de produção capitalista?
Segundo o dicionário “Oxford Languages”, a palavra ‘vulnerável’ é análoga às palavras ‘frágil, indefeso, exposto, desprotegido, suscetível e/ou atacável’.
Linguisticamente falando, qual o núcleo semântico (significado) dessas palavras?
Em suma, vulnerável é aquela pessoa que hoje pode realizar determinada ação e amanhã não mais. Se assim for, o significado da palavra vulnerável pode nos ajudar a explicar o real sentido da expressão vulnerabilidade alimentar.
Partindo do pressuposto que as relações sociais de produção são organizadas de acordo com o modo de produção vigente em cada época e sociedade, datado num determinado tempo e espaço, perguntamos
– Qual o padrão de relação social que pauta a vida humana atualmente? Sabendo que o modo de produção existente em nossa sociedade é o modo de produção capitalista, baseado fundamentalmente, de um lado, na propriedade privada dos meios e modos de produção, e, de outro, no trabalho assalariado, conseguimos chegar a conclusão de que as relações sociais de produção, no tempo que tange, é uma relação antagônica de desejos conflitantes e irreconciliáveis entre as classes, devido à apropriação privada da riqueza.
Sabendo que na linguagem mercantil não há espaço para sentimentos ou afetos, todos os que se encontram no estado de mercadoria é uma pessoa em estado de vulnerabilidade alimentar.
O conjunto dos trabalhadores, na dinâmica da sociedade capitalista, trabalham não por prazer ou gozo pessoal, e sim para manterem suas vidas no nível de sobrevida, visto que o trabalho na sociedade capitalista não agrega nenhum elemento superior a sua constituição humana.
A pessoa que não detém os meios e modos de produção é obrigada, como meretriz, a se vender por um preço vil e a estar disposta a realizar as coisas mais i-morais em troca de mais um dia de vida.
Como são privados de suas condições elementares de existência pela expropriação dos recursos minerais, energéticos, ferramentais, nós, trabalhadores, vamos até o mercado de trabalho em busca de alguma ocupação momentânea que aceite a nossa oferta de trabalho. Uma vez conquistada a possibilidade de colocar a mão de obra em atividade através de um contrato OU NÃO de trabalho, nós passamos a contar, mensal ou diariamente, com um salário [sal a gosto do patrão], e a partir deste passamos a financiar nossa existência e a dos nossos familiares. A dinâmica que rege nossas relações está pautada na troca. Nós nos oferecemos como força de trabalho a ser explorada horas a fio enquanto os patrões, empresários ou capitalistas oferecem uma quantia mínima de bens de consumo.
Muitos perguntarão: pode esse trabalhador, que vende diária ou mensalmente sua força de trabalho, ainda ser considerado, em termos alimentares, vulnerável mesmo após ter garantido a venda de sua força de trabalho? O entendimento imediato dirá que agora esse trabalhador se encontra estabilizado economicamente, podendo garantir tanto o seu sustento como o de sua família.
Com o recebimento de salários, o trabalhador consegue manter sua existência por um tempo, mas não se garante perpetuamente. Eis o medo do amanhã! Portanto, o trabalhador, hoje considerado estável, é, na verdade, dentro do modo de produção capitalista, um eterno vulnerável. Sempre frágil, indefeso, exposto, desprotegido, suscetível e atacável. A prova dos nove são as crises.
Para ilustrar o que está sendo dito, observe: quem é que não se lembra dos anos de “ouro” dos governos do PT, os quais a classe trabalhadora vivia a fazer crediários nas Casas Bahia em busca de um televisor novo? Qual foi o destino desta parcela da sociedade quando a marolinha de 2008 transformou-se num grande Tsunani em 2013-14? O sonho da televisão passou a não mais garantir nem o pão.
O que estou querendo dizer com tudo isso é que a estabilidade presente de qualquer trabalhador, que tem, tão e somente, a sua força de trabalho como possibilidade de vida, é na realidade certeza de sua instabilidade futura. A cada cenário de crise, distúrbio e inflação a classe trabalhadora prova o gosto amargo do fel.
Se o que está acima é verdade, não temos então somente 120 milhões de pessoas em estado de vulnerabilidade alimentar, mas sim todos aqueles que dependem, em maior ou menor grau, da venda da força de trabalho em troca de um salário.
Se todos aqueles que vivem e sobrevivem por meio de salários estão em estado de vulnerabilidade alimentar, quem são os que nada têm para comer? Seguindo a lógica de nosso raciocínio – [os desempregados]. Pois, são esses que querendo vender sua força de trabalho em troca de salário não encontram oportunidade para que isso se realize, sendo empurrados para a linha de extrema pobreza.
No entanto, qual é a composição dos desempregados?
Uma vez mais temos que realizar um exercício de análise do real, a fim de superar a maquiagem oferecida pelo IBGE. Segundo o IBGE, a definição de desempregado é dada pela soma de trabalhadores em potencial [disponíveis para o mercado de trabalho] aos trabalhadores desalentados [pessoas que cansaram de procurar emprego].
Entretanto, se partirmos do pressuposto que os verdadeiros postos de trabalho são formados pelo trabalho formal, ou seja, trabalho com registro em carteira que goza de todos os direitos de seguridade e previdência social, as demais atividades e funções, que se desenvolvem por fora dessa definição, não pode ser consideradas como trabalho regular, e sim como atividade que a pessoa encontra para não ser condenada imediatamente à fome, uma vez que ela não encontra lugar no mercado de trabalho formal.
Levando em consideração o longo histórico de escravização dos trabalhadores brasileiros, podemos dizer com clareza que todo trabalho desprovido de direitos e garantias é tão somente uma atividade ou função exercida pelo trabalhador que se encontra desempregado e condenado à fome, à miséria e, consequentemente, à morte. Portanto, o número de desempregados não se resume aos dados oferecidos pelo IBGE, e sim por todos aqueles que estão fora do mercado de trabalho formal.
Excluindo, de uma força de trabalho ampliada de 116.723.000 (segundo o PNAD out-nov-dez/2021) de trabalhadores brasileiros, os trabalhadores com carteira assinada (domésticos ou não), os servidores estatutários, os ditos empregadores com CNPJ, os trabalhadores por conta com CNPJ (ainda que essa situação possa ser questionada como pejotização da vida), chegamos ao número de 62.408.000 de desempregados, que corresponde a 53,47% da força de trabalho ampliada e 29,12% de toda a população brasileira. Isto é, este é o real número de desempregados que não compõem os postos de trabalho formal.
O número de pessoas em estado de vulnerabilidade alimentar está em 44.783.000 de pessoas (número que representa os trabalhadores com carteira assinada, servidores públicos e pejotizados), e o número de pessoas que beira a fome e a miséria encontra-se na marca de 62.408.000 de pessoas.
Muitos dirão – Você não pode incluir no cálculo os trabalhadores concursados porque gozam de certa estabilidade!
Como resposta: Com o avanço da lógica privatista sobre as empresas estatais e sobre serviços públicos, como ficará a situação desses trabalhadores? Logo, devem ser contabilizados.
Fechando a conta somente com os dados da força de trabalho ampliada, a soma de pessoas em estado de vulnerabilidade com os que nada têm para comer é de 107.191.000 pessoas. Estas pessoas não estão sozinhas, e sim acompanhadas por seus familiares, formados muitas vezes por idosos, doentes, parentes próximos, crianças e adolescentes. Multiplicando 107.191.000 pessoas pelo fator 1,9, número que corresponde ao fator de multiplicação familiar no Brasil, chegamos ao número de 203.662.900 pessoas. Esse número corresponde ao total de 95,03% dos brasileiros.
O sobrante da população, a fim de compor a totalidade de 100%, não é a pequena parcela que é descrita pelos jornais com os seguintes dizeres – 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda que outros 95%? Quer dizer, os 5% (10.715.513) compõem, no Brasil, a classe dominante e os estamentos burocráticos ao seu serviço.
Os reais vulneráveis são aqueles que são obrigados a defender seu pedaço de pão, mesmo, muitas vezes, sem poder aumentá-lo ou melhorá-lo.
Com essa análise já não há mais espaços para a aplicação de atitudes paternalistas, estamos falando tão e somente da GUERRA DE CLASSES existente em sua forma nua e crua. De um lado, os assalariados; de outro, os exploradores. A FOME É A ARMA QUE A CLASSE DOMINANTE LATINO-AMERICANA ESCOLHEU PARA PROMOVER O EXTERMÍNIO EM MASSA.
Por isso, as políticas raciais, de gênero e de sexualidade, por fora de qualquer conteúdo de classe são importantes para a burguesia e seus operadores, elas servem para esconder o grau de exploração e opressão que os trabalhadores brasileiros sofrem.
Observe como a mídia, da situação ou oposição a serviço da burguesia, opera o divisionismo no seio da classe trabalhadora por meio das pautas identitárias:
- Revista Época – Trabalhador branco recebe 75% a mais que pretos e pardos no Brasil, aponta IBGE.
- Site UOL Economia – Trabalhadores negros recebem salário 17% menor que o de brancos que têm a mesma origem social, em média, aponta um estudo divulgado hoje pela PUCRS.
- Rádio CUT – Dados mostram que salários de trabalhadores negros são menores que dos brancos e eles ocupam postos mais precarizados e sem proteção social.
- Jornal CNN Brasil – Mulheres ganham 19% menos que homens –no topo, a diferença é de mais de 30%.
- Universidade Federal Fluminense – Homens gays e/ou bissexuais ganham, em média, de 11% a 27% menos que homens heterossexuais.
Essas políticas foram iniciadas coincidentemente a partir da década de 1970 no auge das grandes crises capitalistas, iniciadas em 1968. Conforme não puderam manter em pé o antigo contrato social entre capital e trabalho, que pautava-se na promoção do pleno emprego e na expansão do estado de bem-estar social, as classes dominantes passaram a elaborar um novo contrato capital-trabalho. Este não mais deveria ser pautado na promoção do bem-estar social financiado pelo Estado, e sim pela promoção das individualidades e das liberdades pessoais não mais atreladas ao Estado.
O Estado, a partir deste ponto, passou a ser redefinido a não mais prover serviços públicos essenciais a todos, mas a resguardar a agenda dos Direitos Humanos in abstract. A principal defesa que o Estado deveria promover e respeitar era a agenda da Seguridade Humana, baseada na individualidade do sujeito. Essa reorganização do Estado foi acompanhada pela mudança do princípio legitimador da política estrangeira dos EUA, que passou de um franco atirador para defensores-mor da agenda da Segurança Humana. Ou seja, do Napalm para a ajuda humanitária.
É neste marco que surge nos Estados Unidos a Teoria Crítica Racial. Ela é um marco teórico procedente do mundo do direito que começa a ser forjado na década de 1970 por acadêmicos, como ‘Kimberlé Crenshaw’, que estudam os movimentos dos direitos civis. Argumentam, grosso modo, que raça é uma construção social e racismo é algo que vai além dos preconceitos pessoais, que o ordenamento jurídico está configurado de uma forma que sustenta e estimula a supremacia dos brancos sobre os negros. Por isso, concluem, as conquistas da época não conseguiram erradicar a injustiça social.
A Teoria Crítica Racial décadas depois chegaria ao Brasil com a alcunha de Racismo Estrutural pelo sorriso simpático de Silvio de Almeida. O Racismo Estrutural é definido como a formalização de um conjunto de práticas institucionais, históricas, culturais e interpessoais dentro de uma sociedade que frequentemente coloca um grupo social ou étnico em uma posição melhor para ter sucesso e ao mesmo tempo prejudica outros grupos de modo consistente e constante causando disparidades que se desenvolvem entre os grupos ao longo de um período de tempo [grifo meu].
Qual a perversidade escondida por trás dessas teorias? A colocação de negros contra brancos em confronto direto e aberto, como mostrou o Jornal El País sobre a “Guerra Cultural” ocorrida nas escolas estadunidenses em torno desta questão. A política de guerra cultural coloca que, em maior ou menor grau, um determinado grupo sempre estará em vantagem em comparação a outro, mas nunca por questões de posse material tão somente por questões culturais e escolhas pessoais.
A forma oferecida pela Guerra Cultural de analisar as relações sociais instaura o caos no seio da classe trabalhadora. Ao semear a discórdia, a classe dominante consegue colocar no interior das organizações classistas: negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexual contra heterossexuais, transexuais contra Cis.
Há diferença salarial? Com certeza. Mas isso não é a pedra angular do problema. Qual é o centro do problema? A política salarial dirigida pela burguesia. Se negros e brancos, homens e mulheres, hétero e homossexuais, trans e cis, são assalariados, isso evidencia que ambos têm, única e exclusivamente, a força de trabalho para vender. Se é assim, isso demonstra que todos os citados não detêm controle dos meios e modos de produção. Ao contrário, ambos são possuídos pelos possuidores destes meios e modos, a burguesia.
Assim sendo, todos os enquadrados como assalariados são realmente vulneráveis. Diante do aprofundamento da vulnerabilidade devemos levantar imediatamente duas bandeiras de luta:
- Fim das privatizações e cancelamento das que já foram feitas, sob o controle dos trabalhadores organizados em comitês.
- Cancelamento da dívida pública ultra corrupta (que consome mais de 45% do Orçamento público federal).
- Estatização do sistema financeiro, de minas e energias e do comércio exterior.
- Nova reforma trabalhista que contemple as necessidades dos trabalhadores.
- Acabar com a terceirização de mão de obra no serviço público, concurso amplo para todos os cargos com pontuação no concurso para os trabalhadores terceirizados.
- Amplo programa de obras públicas que permita a criação de espaços verdes, centros culturais, normalização de bairros, assim como a expansão dos serviços básicos a todas as áreas urbanizadas e habitadas das periferias e comunidades, visando um amplo programa de geração de empregos.
- Aumento do orçamento destinado para a saúde e educação públicas para 15% do PIB em cada setor.
- Fim do latifúndio.
- Imediata coletivização das terras brasileiras. Que a produção seja direcionada ao consumo das necessidades humanas, não à especulação financeira.
- Ampliar os programas sociais com o aumento dos orçamentos e colocá-los sob o controle dos trabalhadores. O objetivo principal deve ser a redução do legado histórico da pobreza, principalmente sobre o povo negro e os povos originários.
- Aumento do salário mínimo para o valor equivalente hoje a R$ 6.000.
- GATILHO MÓVEL DE SALÁRIOS – os contratos coletivos devem assegurar o aumento automático dos salários, correlativamente à elevação dos preços dos artigos de consumo;
- ESCALA MÓVEL DAS HORAS DE TRABALHO – O trabalho formal disponível deve ser repartido entre todos os trabalhadores existentes, e essa repartição deve determinar a duração da semana de trabalho. O salário médio de cada trabalhador deve continuar o mesmo da antiga jornada. Nenhum outro programa pode ser aceito para o atual período de catástrofes. As organizações de massa devem unir aqueles que têm trabalho àqueles que não o têm através dos mútuos compromissos de solidariedade.
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