Carta de um Gari

Carta de um Gari

Eu, homem-máquina, controlo máquinas humanas, essa força tamanha que me espanta. Vejo sapatos, camisas, óculos e calças. Computadores, celulares e tablets. Trens, metrôs e ônibus. Estradas, prédios e casas. Oleodutos, indústrias e hidrelétricas. Tanques, armas e ouro. Petróleo, gás e carvão. Vejo tudo isso, só não vejo minha mão. Dizem que é ela quem tudo produz, e a quem nada pertence. Os que de gravata se vestem, nunca se mexem. Eu que produzo sou chamado de burro.

Por Marchesano

Mãe, bom dia.

Espero que estejas bem. De acordo com as questões levantadas em sua última carta, escrevo a minha que aqui segue. Quero que antes de todos saiba:

Os que me dominam se colocam a pensar, enquanto eu sou obrigado a trabalhar. Recolho o lixo, cozinho, limpo a rua. Fabrico bens, efetuo serviços e a minha vida dura continua. Acordo às 5. Durmo às 23. Dizem que sono bom é o de oito horas, mas isso comigo nunca teve vez. Não durmo, cochilo. No ônibus, metrô ou trem. Onde sobrar um tempo fecho meus olhos em ritmo vai e vem. Depois de idas e vindas, cansado ainda estou. Devido à minha péssima alimentação, na farmácia vou.

Comecei com medicamentos sem tarja, logo fui para a amarela. Depois para a vermelha. Agora me encontro na preta. Já tomei todos os tipos possíveis de remédio: Alprazolam. Bromazepam. Clonazepam. Clobazam. Clorazepato. Clordiazepóxido. Diazepam. Lorazepam. Midazolam. Fenobarbital. Pentobarbital. Secobarbital. Tiopental. Zolpidem. Anfepramona. Femproporex. Sibutramina. Quando tudo perde o efeito busco algo mais intenso para acelerar e segurar meus nervos. Piracetam. Ritalina. Modafinil. Adderall. Anfetaminas.

Mãe, para além disso tudo, muitos ainda dizem que vivemos numa democracia. Só não sei qual. Engraçado, no último ano a Petrobras distribuiu mais de 100 bilhões de lucro entre os acionistas, enquanto a nós foi repassado o custo do diesel e da gasolina [25% e 18%]. Isso sem contar as outras grandes empresas que um dia foram nossas. 

Ontem fui ao mercado comprar o que comer e logo me deparei com preços de cair o queixo. Cenoura a 12 reais. Óleo a 10. Arroz a 25. Feijão a 8. Caros estão? Estourei o cartão. Agora estou com medo porque o juros rotativo do cartão de crédito ao ano fechou em 344% no último ano. Carne bovina nem como mais. Minha vida hoje se resume a frango. Frito, assado ou refogado. Mas frango. A vida no capitalismo é assim: lucro para eles, prejuízo pra mim.

Aqui no serviço estamos em greve pelo 9°, 10°, 11° dia não sei, estamos em greve. Os professores de Minas também. Estamos em greve. Os trabalhadores da CSN também, que não aceitaram a esmola oferecida como reajuste. Estamos em greve. Também os trabalhadores da Toyota que foram desligados da empresa após o fechamento da fábrica de São Bernardo do Campo. Estamos em greve. Somos muitos, mas os sindicatos e partidos nos tratam como poucos e até mesmo como loucos. Dizem nos representar, mas o que fazem é nos silenciar. A TV, os sindicatos e partidos parecem uma coisa só. Vivem a nos massacrar e a nos constranger. Mãe, acho que no fundo eles têm medo de nós.

Saiba que aqui já privatizaram minha vida, meu trabalho, minha hora de amar e meu direito de pensar. É da empresa privada o meu passo em frente, meu pão e meu salário. E tudo o que os sindicatos e partidos dizem é: defendamos a democracia. Isso é muito hilário. O maior líder popular que outrora foi sindical defende agora abertamente o aborto, esteve 14 anos no poder e nada pôde resolver.

A turma descolada da esquerda arrojada à espera dos tanques está. Diz ter pesadelos com a volta da turma verde-oliva. Observa como profetas o retorno do DIP e DOPS. À espera do passado no presente continua. Nosso país perdeu a CSN, Telebrás, Vale do Rio Doce, Eletrobrás e logo mais a Petrobras. Mesmo assim todos insistem: “defenderemos a democracia”. Loucura, mãe? Não sei. Só sei que esse é o jogo da vez.

Veja o saldo da Constituição de 1988:

  • Mais de 700 mil presos pelo cruel regime carcerário, mais de 15 milhões de desempregados, mais de 40 milhões na informalidade, inflação de dois dígitos, falta de infraestrutura e saneamento básico, salários baixíssimos. 

[Viva a democracia?]

  • Bancos em lucratividade máxima, classe trabalhadora em dívida extremada. 5% da população rindo, 95% chorando. Aos meninos de Harvard, diplomas. Aos da Rocinha, bala.

[Viva a democracia?]

Negro, mestiço, pardo da favela, alguém sabe quem construiu ela? Heliópolis, Cidade de Deus, Paraisópolis, Pirambu, Casa Amarela, Baixada da Estrada Nova, Coroadinho, Rio das Pedras, Sol Nascente, Rocinha. As Favelas. Latifúndio construiu cada uma delas. Um país Brasil continente nas mãos de pouca gente. 1% que domina muita gente, tratando-as como carentes. Carente de quê? De terras, casa, pão, roupa e poesia. De tudo. 

As manifestações políticas na Paulista são tão intensas que nem o vendedor de água comenta. Os modernos progressistas vivem a se manifestar nos sábados em prol dessa democracia, já que dizem que de semana não dá. Isso é muito semelhante a shows, porque greve verdadeira se faz durante a semana. Ela deve acontecer nos dias de trabalho. Uma coisa sei: para essa turma GREVE virou pecado.

Alguns dizem que Deus ajuda quem cedo madruga? Faz tempo que não durmo esperando AJUDA. Parar a produção é crime? Gari quando se põe a paralisar as atividades logo é condenado pela mídia que nunca fala a verdade. Chão limpo ninguém reconhece. Lixo recolhido ninguém agradece. A mídia somente nos percebe quando fazemos greve. Então GREVE.

O Porto de Santos sendo privatizado isso nunca vira um fato noticiado. Talvez isso aconteça para que a cocaína seja transportada sem a presença do fiscal da Receita. Afinal de contas, anda sendo apreendido por semana quase uma tonelada da branca. Pobre filho do pobre trabalhador que por seis gramas da branca vai parar no triturador. J. P. Morgan com 18 toneladas sai ileso, isso é democracia ou é um profundo desprezo? Vivi para afirmar: bandido bom é bandido vivo, porque o que é morto não é bandido. Vivemos sim numa democracia. Na democracia da dor, do frio, do abandono afetivo.

O regime carcerário tem o DNA da fome, lá vivem os que na rua ou em casa não comem. O pior de tudo é que isso acontece em plena democracia. Imagine se estivéssemos no comando dos verde-olivas. A democracia é algo legal. Você vota. Você fala. Você pensa. Porém, os que do dinheiro dependem, aos donos do dinheiro como mão de obra se vendem.

Tudo isso é democracia. Bem-vindo ao reino da liberdade. O que a classe trabalhadora deseja e quer, a mídia rotula como vaidade. Ucrânia em guerra. Trabalhador morrendo na favela. Aos 45 do segundo tempo, o trabalhador levanta os olhos aos céus e diz: Por que isso acontece comigo, logo eu que fui sempre muito amigo? Sofre eu, sofre meu filho, sofre minha mãe, sofre a esposa do meu falecido.

A dor no peito antes de ser um sentimento é uma inflamação econômica que queima a sociedade por dentro. Os responsáveis por essa dor são os organizadores das grandes guerras.

Mãe, você sempre me disse: “estuda para ser gente, não quero que você cresça e lamente. Chegue onde sua mãe não foi, quero estar lá para te dar um oi”.

Hoje sorrindo sorrateiramente te respondo: “Mamãe me escuta, como poderia ser alguém se para todos aqui embaixo a vida dura continua. Não há empregos aos que estudam, os jovens formados com seus diplomas enchem as ruas. As jovens filhas da classe trabalhadora sonham ser mães para ter uma experiência arrebatadora. A elas não existe o caminho da escola, do trabalho ou da luta, há somente o de serem mães dentro de uma experiência muito dura. Essa é a classe a qual pertenço.

Nasci das suas entranhas e hoje a considero estranha. Odeio os meus, assim fui educado. Nunca aprendi a amar os que comigo foram criados. É uma dor tão grande que nem consigo chorar, hoje sou uma máquina programada apenas para fabricar.

Eu, homem-máquina, controlo máquinas humanas, essa força tamanha que me espanta. Vejo sapatos, camisas, óculos e calças. Computadores, celulares e tablets. Trens, metrôs e ônibus. Estradas, prédios e casas. Oleodutos, indústrias e hidrelétricas. Tanques, armas e ouro. Petróleo, gás e carvão. Vejo tudo isso, só não vejo minha mão. Dizem que é ela quem tudo produz, e a quem nada pertence. Os que de gravata se vestem, nunca se mexem. Eu que produzo sou chamado de burro.

Agora a pandemia parece ir embora, não pela ausência do vírus mas pela mudança que acontece lá fora. Os Estados Unidos e a Europa estão focados em ganhar dinheiro com a guerra. Pela pandemia nem mais o Bonner se interessa. Houve vacina no braço, mas ainda não chegou comida no prato. Somos uma colônia a serviço das grandes empresas americanas e europeias. Colônia usada como cobaias desnutridas.

Dito isso, mãe, seguirei lutando, em nome dos sonhos que eu e os meus podemos conquistar. Não tenho nenhuma ilusão em meu peito, é hora de avançar. É preciso construir um partido revolucionário de luta que ocupe a rua. É preciso que as nossas vozes tenham som.

É preciso que nossos punhos tenham força. Todos os partidos e sindicatos que aí existem corrompidos estão. Venderam-se por 30 moedas e não trazem consigo nenhuma decepção. Mãe, descobri que lucro é roubo. O trabalhador é quem produz enquanto o acionista vagabundo é quem nos explora.

Estudei não para ser mais um diplomado. Estudei desta vez para ser um marxista revolucionário.

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