60 anos do golpe militar: Compreendendo o regime militar brasileiro 

60 anos do golpe militar: Compreendendo o regime militar brasileiro 

Por Mário Medina

Neste ano de 2024, o golpe militar completa 60 anos. Muito tem se falado na imprensa, nas mídias, na academia, etc, sobre esse período da história nacional; muito em vista também das movimentações políticas recentes, depois da ascensão da extrema-direita, a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república, seu conturbado governo, sua derrota e, posteriormente, as tentativas golpistas envolvendo novamente os militares. Militares que tiveram papel muito ativo no último governo, onde Bolsonaro louvava o regime de exceção que vigorou no país entre 64 e 85, chegando inclusive a exaltar os métodos sanguinários perpetrados pelos militares daquele período.

Uma década atrás, por exemplo, o país assistia e discutia os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, em que a lei de anistia de 1979 foi muito contestada por não ter responsabilizado os culpados por crime de tortura. Outros países da América Latina que passaram por ditadura militar julgaram, condenaram e levaram ao cárcere os responsáveis por violações aos direitos humanos. No Brasil não houve penalização. A lei de anistia como que passou uma borracha jurídica por sobre a questão; permitiu que os exilados regressassem ao país, os guerrilheiros, aqueles que assaltaram bancos, que ficaram na clandestinidade, que sequestraram, etc. E simplesmente não autuou os militares que praticaram torturas, estupros, execuções e ocultação de cadáveres. 

Pois bem, nas décadas subsequentes ao regime militar muito se falou sobre as barbaridades cometidas pelo sanguinário regime dos generais, inclusive, como dito, contestando a lei de anistia de 1979. A sociedade brasileira ao longo dos anos elaborou de diversas maneiras o duro período de repressão imposto pelos militares. Muitos filmes foram feitos, muitos livros, publicados; muita água correu por sob a ponte da discussão política a respeito do período em questão. O consenso na sociedade era de que o golpe havia sido um crime contra a nação, e que o regime militar fora um castigo, uma lástima a ser deplorada em todos os sentidos. Assim foi até que uma dura conjuntura política de direitização abateu novamente o país, na esteira das jornadas de junho de 2013 e no subsequente movimento de reacionarismo que se seguiu, desfechando na sequência daqueles anos o golpe contra a presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição do ultradireitista Bolsonaro, que se notabilizava exatamente por reclamar a herança do golpe de 64 e do regime militar. 

A partir de então o país mergulhou numa frenética polarização política, com o aparecimento e o estabelecimento de um fenômeno reacionário de massas, com o desrecalque de manifestações de psicologia fascista e com movimentos políticos declaradamente partidários de um novo golpe militar.

Tendo pois em vista os 60 anos do golpe de 64, as controversas posições perante a questão, diante dos últimos acontecimentos no país, e a elaboração política e teórica dos movimentos, da academia e da sociedade como um todo diante das últimas manifestações, pretendemos neste breve artigo revisitar o regime militar, passando por suas motivações e origens, as classes sociais e as forças externas que o engendraram, suas políticas econômicas, as implicações sociais de tais políticas, com suas drásticas mudanças, o regime de violenta repressão, com seus atos institucionais cerceadores de direitos, que por mais de 20 anos usurparam as garantias cidadãs da população. 

Os teóricos que aqui usamos como referência, se propuseram a caracterizar o regime militar brasileiro e o fizeram com muita competência. O Brasil tem farto material à disposição em se tratando de ditadura militar. Se há uma nova problematização a ser feita, esta é justamente a questão do país ter recentemente passado pelo risco de um novo golpe, em virtude do aparecimento desse novo movimento de extrema direita. Neste sentido, é possível estabelecer uma interessante comparação entre o período que propiciou o golpe militar de 64 e o período político pelo qual passamos agora. Os dois períodos se caracterizam pela conturbada situação da geopolítica internacional, com o imperialismo americano reordenando táticas com o intuito de garantir o domínio do mercado brasileiro, e para isso se valendo de métodos de manipulação ideológica das massas, de guerra híbrida e infiltração das instituições para a consecução de uma política geral alinhada a seus interesses regionais.

Tanto no início da década de 60 como agora, o cenário é de tentativa dos EUA e do capital financeiro em fazer do Brasil uma segura plataforma de suas políticas, viabilizando mercados, insumos, mão de obra barata. Neste sentido, vale ressaltar os aprendizados históricos para que determinados episódios não se repitam. Apesar de que os Estados Unidos, justiça seja feita, não se posicionaram pelo golpe que Bolsonaro e alguns generais tramavam em fins de 2022. Isso porque a política de Bolsonaro foi demasiadamente conturbada, e também porque em fins de 2022 o presidente norte-americano Joe Biden não deu aval para o movimento de Bolsonaro, que é vinculado ao movimento internacional de extrema-direita que tem nos Estados Unidos a representação do ex-presidente Donald Trump, arqui-adversário de Biden. Há que se pontuar que evidentemente não é tão simples hoje em dia se lançar o expediente de um golpe militar, como em 64, com todas as implicações políticas que traria tal movimento. Hoje a política é mais sutil, mais complexa, com outras determinações, num outro cenário, muito embora haja crise internacional e necessidade de rever estratégias de acumulação, que foram as motivações materiais por detrás do golpe de 64.

Abordamos aqui o fenômeno ocorrido há seis décadas levando em conta os anos decorridos. Tendo por base as referências bibliográficas que abaixo apresentamos, e reiterando suas teses, que são deveras pertinentes, o que seria possível acrescentar de comentários? Pensamos que há novos apontamentos a serem feitos, observando a história recente e cotejando os últimos acontecimentos com as movimentações pré-golpe e com o desenvolvimento histórico e político dos anos de chumbo. A própria Comissão Nacional da Verdade é um material que pode ser analisado e entendido à vista da correlação política de sua época. É notório e de extraordinário pasmar que os militares que cometeram as torturas tenham passado impunes a todas essas décadas. Os crimes foram tão vis, tão horripilantes. Em todo mundo há responsabilização de crimes parecidos. Como foi possível que estes senhores tenham conseguido viver suas vidas sem pagar minimamente pelas atrocidades cometidas? E por que os militares continuaram ativos na cena política brasileira no período da Nova República? Por que o poder civil ficou desmesuradamente tutelado pelos generais? Há inclusive resquícios disso na carta constitucional de 88. Enquanto redigimos estas páginas, o Supremo Tribunal Federal se ocupa de esclarecer que um dos artigos da Constituição (o famigerado artigo 142) não dá aos militares poder moderador algum, que não é prerrogativa das forças armadas intervir no poder público. 

Isso faz parte do desenrolar de uma complicada e intrincada trama política fomentada pelo bolsonarismo, que nos últimos anos, após a Comissão da Verdade, mais de 50 anos após o golpe, quase 30 depois de proclamada a Constituição, ensejou na discussão política nacional a possibilidade de uma intervenção a depender de alguma crise que pudesse criar caos público e institucional.

Movimentações do golpe

Os militares conspiraram por muito tempo contra a democracia brasileira. Desde Getúlio havia por parte de determinados setores militares o desejo de intervir na política. As coisas escalaram à medida que as circunstâncias da conjuntura política desagradavam ao espírito reacionário de parte considerável das forças armadas. Getúlio havia segurado o ímpeto golpista com a cartada do suicídio. A comoção foi grande e os militares não quiseram intervir no calor dos acontecimentos. Mas estavam à espreita. O furor reacionário da classe média embalada por figuras como Carlos Lacerda, a posição de destaque na sociedade de setores da política mais alinhados ao progressismo, como o próprio Partido Comunista Brasileiro, liderado por Prestes, os sindicatos em evidência, o desejo do presidente João Goulart de dar uma guinada desenvolvimentista após assumir o cargo com tamanha dificuldade (o Brasil tinha passado por um momento de parlamentarismo, que havia sido rechaçado pela população em plebiscito), após a renúncia do conservador Jânio Quadros, enfim, com todos esses fatores internos, somados aos externos, com o decisivo apoio e o fomento norte-americano, lançaram-se os militares brasileiros à aventura golpista. 

Os direitistas haviam pintado Jango de comunista. Artifício muito parecido ao atual da extrema-direita. Usavam de um palavrório pretensamente religioso e patriótico quando na verdade se batiam por interesses que não eram os do povo brasileiro. A classe trabalhadora, que vinha em progressivo movimento do campo para as cidades, se estabelecendo em funções fabris, no bojo das transformações que se encaminhavam desde Getúlio, passando pelo governo também desenvolvimentista de Juscelino Kubichek, tinha a necessidade de um governo que atendesse aos seus anseios por serviços públicos condizentes com a transição social que se operava, com políticas sociais e com obras públicas que organizassem o espaço citadino e também o campo. Havia a premente necessidade de obras de urbanização, com moradia, esgotamento, eletrificação, etc, enquanto no campo havia já a velha reivindicação por reforma agrária. João Goulart e seus pares tinham ciência de que o desenvolvimento nacional dependia desse conjunto de medidas administrativas que ensejassem as condições necessárias ao desenvolvimento com alguma justiça social e com harmonia. De forma alguma Jango tinha aspirações socialistas. Era um estancieiro do Rio Grande do Sul, um político populista, mas tradicional, sem o menor apetite por mexer com a propriedade privada e a estrutura geral do capitalismo. Pelo contrário, havia nesse movimento de desenvolvimento social justamente o desejo de modernizar o capitalismo brasileiro, de colocar o Brasil num outro patamar na estrutura produtiva mundial. E tais desejos foram frustrados por políticos conservadores aliados ao imperialismo. 

A classe média mais reacionária serviu como testa de ferro para uma atividade retrógrada e antinacional, lançando-se em falsa operação moralizante. Falava-se em corrupção, o bordão que nunca saiu da boca dos políticos profissionais e que tão bem serve até hoje para ludibriar incautos. A semelhança com o movimento bolsonarista não é à toa. Os movimentos de 2013 já apontavam para isso. E no desenvolvimento dos acontecimentos políticos, com Lava-Jato, Sérgio Moro, Deltan Dalangnol, prisão de Lula, etc, foi possível notar toda uma orquestração política e social que dava às elites e ao imperialismo condições de intervir no processo institucional, de modo a frear políticas nacionais, ao passo em que colocavam políticos fisiológicos no poder com o intuito de passar medidas de ajuste fiscal, retirada de direitos trabalhistas, privatizações, etc. 

A diferença da guinada reacionária de 2013 é que esta não se lançou no expediente militar explícito. Os militares, na verdade, ficaram na retaguarda dos acontecimentos, na vice-presidência de Jair Bolsonaro. Em 64, desde o início os militares foram a figura de proa. Se mantiveram no poder político, fecharam o regime e a muito custo foram sair depois, após longos anos de arbítrio e depois de muito sangue corrido.

Mas nosso assunto aqui é mais especificamente o golpe de 1° de abril. Golpe que passou a ser tramado pelos militares após a efervescência política que tomou o país no mês de março de 64. O clima era de insatisfação popular com a inflação, que vinha galopante no período, e de radicalização dos movimentos sociais e trabalhistas. O ápice da agitação política se deu quando Jango, acenando para os sindicatos e setores mais progressistas da sociedade, passou a defender novas reformas constitucionais, entre as quais, controlar remessas de dinheiro ao exterior e permitir o voto aos analfabetos. 

É bom ter claro que Jango buscava soluções para acabar com a fome e a miséria. A oposição política, sob ordens das elites e do governo norte-americano, classificava Jango como um fomentador de greves, articulador da luta de classes e inimigo do capitalismo. 

Os trabalhadores rurais, mobilizados pelo processo de transformação social que se desenhava, eram despertados contra a secular miséria do campo. A perspectiva de pequenas mudanças num país de grandes desigualdades reacendeu ilusões, por assim dizer. A correlação de forças não se mostrou favorável às classes trabalhadoras. No entanto, por um tempo, milhares de pessoas do povo tiveram em Jango sua utopia de um Brasil desenvolvido e livre da pobreza. Havia essa esperança.

A crise econômica, contudo, com as taxas de inflação que iam a pique, era um dos freios do avanço social. CGT, PTB, Brizola e UNE, entre as demais forças políticas do campo da esquerda, exigiam as reformas de base como solução imediata. Os economistas do governo buscavam o saneamento e o controle da economia com um plano que permitisse as reformas. Mas não havia consenso entre as forças políticas no entorno de Jango (que havia ampliado sua base governista justamente no intuito de salvar seu governo) e acabou não saindo do papel.

A oposição transferia a capital para Washington, os empréstimos em dólar negados ao governo brasileiro financiavam os estados governados pela direita brasileira, que assim conseguia tocar obras e reunir algum prestígio popular. Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e outros políticos hostis a Jango transitavam pela Casa Branca. O momento era de fortíssima polarização política e ideológica. E os EUA se articulavam com os liberais para enfraquecer quaisquer tentativas de governos nacionalistas em seu quintal traseiro, a América Latina.

Uma das questões mais ousadas do governo Jango foi na política externa, e desagradou bastante aos EUA. O Itamaraty estabeleceu a diplomacia do não-alinhamento, desatando assim os nós que atrelavam as decisões brasileiras às decisões norte-americanas. O governo reatou relações com a URSS, votou contra a política colonialista na África e apoiou o direito de Cuba à autodeterminação. A política externa esbarrou nas fronteiras da dependência econômica. Os Estados Unidos pressionavam o Brasil por conta de sua dívida externa, e os diplomatas brasileiros precisavam dar satisfação de muitas das decisões na esfera econômica. Além de Jango contrariar interesses americanos à medida em que cogitava a nacionalização de alguns ramos da indústria. Jango alegava a necessidade de controlar os lucros excessivos dos monopólios, que não permitiam que o desenvolvimento nacional se desse com sustentabilidade no médio e longo prazo. Sendo assim, o governo buscava criar novos acordos, na tentativa de ajustar os interesses conflitantes.

A conspiração militar contra Jango se desenvolveu de um modo que o presidente não pôde conter. Buscou inutilmente aproximação e acordo com os militares. Seria necessária alguma outra tática. No âmbito das tratativas palacianas Jango não poderia debelar o golpe que se anunciava. Prestes a ser deposto, lhe foi sugerido um mea culpa, espécie de autocrítica seguida da renúncia do programa político que tinha em mente. Jango preferiu cair de pé. Não renegou seus propósitos de aplicar uma política nacional e desenvolvimentista com as reformas que vinha anunciando.

Em Janeiro de 64 Jango resolveu regulamentar a lei de remessa de lucros, que tinha sido aprovada pelo congresso havia mais de um ano. O fantasma das reformas, que apavorava as classes médias reacionárias, ganhou corpo em março daquele ano, com amplas mobilizações populares que precederam o comício da Central do Brasil. Militares mais hostis ao governo tentaram inclusive buscar formas de evitar que houvesse o ato da Central do Brasil. Jango, a essa altura, só tinha a mobilização popular como carta na manga. A situação se tensionava abertamente; Jango acenava cada vez mais consistentemente para as reformas.

O ponto alto foi sem dúvida o discurso no famoso comício da Central do Brasil, de 13 de março. O comício tinha como organizadores movimentos sociais e partidos políticos. Destaque para o CGT ( Comando Geral dos Trabalhadores), a central sindical da época, e o Partido Comunista, além das demais agremiações do campo democrático e popular, tendo o PTB, partido de Jango, à frente das mobilizações. Do alto do palanque, em um evento tomado de tensão, inclusive com ameaças de atentados, Jango pronunciou uma contundente fala que incluía as promessas de reforma agrária, diminuição dos aluguéis e nacionalização de refinarias.

As forças reacionárias reagiram de pronto. No mesmo mês reuniram num ato em São Paulo cerca de 500 mil pessoas, evento que ficou conhecido como Marcha da Família com Deus pela Liberdade. O destaque da organização ficou por conta do empresariado e de setores  conservadores, tendo a cúpula da Igreja Católica como importante baluarte.

A insurreição militar não demoraria. O movimento inicial foi em Minas Gerais. Militares do Exército de São Paulo e Rio de Janeiro se juntaram ao motim e em menos de 24 horas já haviam encaminhado o golpe para depor Jango. Reprimiram as primeiras manifestações e mobilizaram tropas no Rio de Janeiro, residência oficial do presidente. Jango se deslocou para Brasília e posteriormente para seu estado de origem, o Rio Grande do Sul, onde seu cunhado, o deputado federal Leonel Brizola prometia resistência aos golpistas. Porém Jango não quis resistir, e fugiu para o Uruguai. Os militares empossaram provisoriamente presidente da república o deputado que presidia a Câmara dos deputados, e em 9 de abril editaram o ato institucional número 1, que depôs formalmente João Goulart. No mesmo mês assumiria a presidência o marechal Castelo Branco, em mandato temporário estipulado para terminar em 1967. Dali em diante o Brasil passaria por 21 anos de ditatura militar. 

O quadro geral da política econômica aplicada pelos militares

O regime militar no Brasil beneficiou algumas classes e setores da sociedade em detrimento de outros. É preciso ter claro isso. Há uma racionalidade no golpe de estado. A bem dizer, tal golpe já vinha se prefigurando havia tempo. Mas o fato é que todo movimento político na sociedade, seja golpe, tentativa de golpe, conspiração, ou mesmo os movimentos mais normais dos tempos democráticos, todos eles expressam a correlação de forças das classes sociais em jogo. A ditadura militar brasileira evidentemente contemplou os anseios de determinadas classes sociais em prejuízo de outras.  As classes beneficiadas incluíam grandes empresários, latifundiários, setores ligados à indústria pesada e multinacionais. O regime implementou políticas econômicas que favoreciam esses grupos, com incentivos fiscais, subsídios e políticas de proteção à indústria nacional.

Por outro lado, trabalhadores, movimentos sociais, pequenos agricultores e outros grupos marginalizados enfrentaram forte repressão, perda de direitos e dificuldades econômicas durante esse período. A concentração de poder e benefícios em determinadas classes foi uma característica marcante do regime militar brasileiro. Essas dinâmicas econômicas e sociais tiveram um impacto significativo no desenvolvimento do país e na desigualdade social que ainda enfrentamos hoje.

Durante o regime militar no Brasil, os índices de concentração de renda aumentaram significativamente. As políticas econômicas implementadas durante esse período contribuíram para acentuar a desigualdade social e a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Essa disparidade na distribuição de renda e riqueza resultou em índices de pobreza e exclusão social durante o período, contribuindo para um cenário de injustiça econômica muito acentuado.

Tais impactos econômicos e sociais do regime militar tiveram consequências duradouras para a estrutura social e econômica do Brasil, moldando a realidade do país dali em diante.

Uma característica determinante do regime militar foi que houve a continuação do período de forte desenvolvimento industrial, com intenso êxodo rural e uma urbanização acelerada no Brasil. Muitas famílias migraram das áreas rurais para as regiões urbanas, especialmente para o Sudeste do país, em busca de oportunidades de trabalho e melhores condições de vida. Essa migração em massa resultou em um significativo aumento da população urbana nas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e outras metrópoles do Sudeste. Muitos migrantes rurais acabaram se instalando em favelas e áreas periféricas das cidades, enfrentando condições precárias de moradia e trabalho.

Essas famílias frequentemente serviam como mão de obra barata para as indústrias que se desenvolviam na região, contribuindo para o crescimento econômico do Sudeste, mas enfrentando desafios relacionados à exploração e condições de trabalho desfavoráveis.

A urbanização acelerada e o êxodo rural durante o período do regime militar tiveram um impacto profundo na configuração demográfica e socioeconômica do Brasil, influenciando a dinâmica das cidades e as condições de vida de milhões de pessoas.

De modo geral, o regime militar acelerou o desenvolvimento industrial com a forte intervenção do estado, mas em benefício das elites. Os trabalhadores e os pobres não viram o seu patrimônio prosperar. Muito pelo contrário, foi um tempo de arrocho salarial, em que uma enorme massa de trabalhadores foram parar em favelas e outros tipos similares de sub-moradia.

A intelectual Lélia Gonzalez, importante pensadora e ativista brasileira, analisou as consequências do regime militar para a população negra sob uma perspectiva muito crítica e engajada. Lelia apontou que o período da ditadura militar teve impactos significativos na vida das pessoas negras no Brasil, exacerbando desigualdades sociais e raciais já existentes. Lelia argumentou que durante o regime militar, as populações negras foram ainda mais marginalizadas e submetidas à condições de vida precárias, que políticas públicas discriminatórias resultaram em maior exclusão econômica, social e política para os negros, perpetuando assim um quadro de desigualdade estrutural.

É importante destacar que houve uma relação muito estreita entre setores empresariais e o governo durante esse período. Muito embora o regime militar tenha centralizado no estado as políticas econômicas, visando certo desenvolvimento industrial e crescimento econômico, alguns empresários apoiaram ativamente o regime militar, seja por compartilhar de sua ideologia anticomunista, seja por se beneficiarem das políticas econômicas implementadas pelo governo.

Essa associação entre empresários e o regime militar muitas vezes resultou em benefícios econômicos para esses setores, através de contratos com o governo, isenções fiscais e outras vantagens. Além do financiamento e apoio à repressão política promovida pelo regime, contribuindo para a manutenção do autoritarismo e da violação dos direitos humanos.

Essa colaboração entre setores empresariais e o regime militar é um aspecto importante da história do Brasil durante esse período, e ainda é objeto de debates e reflexões sobre a responsabilidade do setor privado na manutenção de regimes autoritários. Há historiadores que inclusive optam por chamar o movimento de 64 como golpe civil-militar. Nosso entendimento é que o golpe teve características militares por hegemonia. Tanto que foram os generais que se revezaram na presidência. O regime foi violento, policialesco, e por muitos anos extremamente fechado e sufocador dos anseios democráticos da sociedade civil. Outros elementos se associaram. E quem deu efetivamente o aval foram os Estados Unidos. Ou seja, foi um golpe militar clássico que enveredou o estado brasileiro em políticas que garantiram a espoliação do capital estrangeiro, com a associação e o beneplácito do capital nacional, antipatriota e sabujo dos interesses americanos no país. 

O livro «Pequena História da Ditadura Brasileira», de autoria de José Paulo Netto, que apresenta uma abrangente e sistemática análise do período da ditadura militar no Brasil, destaca com muita competência os diferentes aspectos desse período histórico. Dentre as principais teses e abordagens do autor, podemos destacar a contextualização histórica e o desenho geral do conflito de classes por detrás do regime de exceção. Netto situa a ditadura militar dentro de um contexto histórico amplo, destacando as origens, com o cenário mundial de guerra fria e de extrema polarização ideológica entre os blocos capitalista e socialista (polarização que internamente é também muito acirrada, na esteira das disputas políticas que vinham do tempo de Getúlio), com o imperialismo americano envidando esforços para consolidar sua área de influência no continente, expandindo seus negócios com o capitalismo em desenvolvimento nos países ao sul. E os desdobramentos e as consequências desse período autoritário para a sociedade brasileira.

Zé Paulo Netto faz a perfeita análise das estruturas de poder. O autor examina as estruturas de poder político, econômico e social que sustentaram o regime militar, evidenciando as relações entre as elites políticas, empresariais e militares durante esse período.

Quanto aos empresários que se associaram ao regime militar, é importante destacar que houve uma relação estreita entre setores empresariais e o governo durante esse período. 

Essa associação entre empresários e o regime militar muitas vezes resultou em benefícios econômicos para esses setores, através de contratos com o governo, isenções fiscais e outras vantagens. Além do financiamento e apoio à repressão política promovida pelo regime, contribuindo para a manutenção do autoritarismo e da violação dos direitos humanos.

Arbítrio e repressão. E a resistência 

O governo militar perdeu logo a mão de manter a situação sob controle, sob alguma estabilidade, e nos primeiros anos de sua gestão passou a lançar mão de sucessivos atos institucionais. Houve o período mais tenebroso, com o combate às guerrilhas e à resistência que optara pela clandestinidade. Muitos anos depois que o regime militar passou a afrouxar as rédeas, com o avanço dos movimentos sociais e o clamor público pela anistia e o retorno à democracia. Até lá, o Brasil haveria de passar por longos anos de violência e repressão política.

Se há algo que marcou a ditadura militar, e que permaneceu na memória da população e sobre o que não há a mínima dúvida, este algo é a violência. Sobre a violência e a repressão desencadeadas, José Paulo Netto aborda a deliberada violência estatal e a repressão política promovida pelo regime militar, o que incluía a perseguição a opositores, o exílio de lideranças políticas, a censura à imprensa e as práticas de tortura. Sobre a resistência e luta pela democracia, o autor destaca também a resistência popular e as lutas pela redemocratização do país, ressaltando o papel dos movimentos sociais, sindicatos, estudantes e demais atores que se opuseram ao regime autoritário.

Um capítulo curioso da ditadura militar brasileira, e que endossa seu caráter de classe e reacionarismo foi a Operação Bandeirantes, também conhecida como OBAN. Foi uma organização paramilitar criada durante o regime militar com o objetivo de reprimir e combater ações consideradas subversivas pelo governo. A OBAN atuou de forma violenta, realizando prisões arbitrárias, torturas e execuções de opositores políticos. A OBAN tinha uma lista de capitalistas que se associavam ao movimento golpista e que se cotizavam para o mantenimento das operações. 

No período em questão, as forças repressivas do estado brasileiro lançaram mão de um sem número de métodos de tortura em interrogatórios, com o intuito de desbaratar guerrilhas urbanas e rurais que surgiam em oposição ao golpe civil-militar de 1964. Ato contínuo, a esquerda brasileira se viu instada a recorrer aos direitos humanos para defender os prisioneiros do regime. Até então pouco se falava em direitos humanos no Brasil, tido como pauta liberal-burguesa, que as esquerdas rejeitavam por conta de uma concepção materialista dialética que naturalmente se alinhava mais à reivindicações classistas.

Nesse sentido, o encontro da esquerda com os direitos humanos pode ser encarado, por assim dizer, como o encontro de uma análise marxista mais geral com demandas do âmbito da micro-política. Foi a ocasião severa da conjuntura política que fez com que militantes oriundos de classes mais abastadas fossem detidos pela repressão e submetidos a tratamentos normalmente dirigidos aos marginalizados da sociedade. Não que o período anterior ao golpe de 1964 não tenha histórico de repressão a movimentos políticos e sociais tidos como subversivos pela ordem vigente. Em outros períodos, comunistas ou democratas já haviam sido conduzidos aos cárceres ou postos na clandestinidade.

Mas foi a partir da experiência de cárcere e tortura empregados após o golpe de 1964, com a vigência dos atos institucionais, sobretudo o quinto, de 1968, que recrudesceram as perseguições e hostilidades a quem ousava se insubordinar contra o governo.

Inúmeros grupos guerrilheiros surgiram na tentativa de impor resistência ao avanço dos militares, que por sua vez contavam com o financiamento e o treinamento de forças civis ou estrangeiras. O referido corte histórico configurou período extremamente conturbado na política nacional, com cassação de parlamentares, perseguição a membros das forças armadas que se opunham ao regime, etc.

Em oposição, diversos partidos ou frações que aderiram à luta armada, se lançaram em operações de expropriação revolucionária de bancos e similares com a finalidade de financiar a compra de armas e a manutenção das organizações na clandestinidade. Essa foi a conjuntura política que conduziu uma parcela da esquerda aos ”porões da ditadura”, locais onde militantes de classe média conheceriam a tortura, método até então reservado a presos comuns.

A esquerda, até então ambientada às análises de conjuntura mais abrangentes, aos balanços mais objetivos e à caracterização das forças sociais e políticas decisivas para os acontecimentos políticos, aprendeu, com o contato duro das prisões, a lidar com uma pauta até então colocada em segundo plano em função de uma concepção leninista de história, que via outras questões como secundárias ou simplesmente liberais. Fazer a experiência da violência policial destinada aos marginais foi, em síntese, o que sensibilizou a esquerda para o discurso dos direitos humanos, trabalho social antes executado por movimentos religiosos, como pastoral carcerária e afins, movimentos sobretudo capitaneados por adeptos da teologia da libertação.

Entendemos que a violência empregada pela repressão legitima a violência que surgiu para se opor ao golpe e ao estado de exceção. Com o parlamento cassado, os sindicatos sitiados, a dura repressão à organização das massas trabalhadoras e às entidades estudantis, muitos grupos políticos optaram por se lançar na luta armada. Mas tais grupos mormente respeitavam convenções internacionais de guerra e tinham uma base ética que faltava aos militares brasileiros. Crimes como tortura e ocultação de cadáveres nunca foram cometidos por grupos revolucionários.

Há muitas coisas que podemos constatar. Muito se fala sobre execução de traidores, condenados por cortes revolucionárias, por exemplo; contradições inerentes à situações extremas, circunstâncias típicas de embates dessa magnitude e que invariavelmente despertam desmentidos, contestações, etc. Mas, verdade seja dita, a esquerda guerrilheira nunca se dobrou a métodos desonestos ou antiéticos como a tortura. Muito embora a esquerda não fosse movida por moralismos, sempre se opôs à execução de prisioneiros ou civis e jamais admitiu tortura.

Lélia Gonzalez abordou a questão da repressão e violência policial direcionadas de forma desproporcional contra a população negra durante o período da ditadura. Ela ressaltou como a militarização do Estado afetou de maneira desproporcional as comunidades negras, ampliando a vulnerabilidade e a violação dos direitos humanos desses grupos. De fato, há que se fazer menção que a ditadura desencadeou nas polícias e na própria sociedade um ambiente mais propício à violência. É o caso dos »esquadrões da morte», milícias paramilitares que se encarregavam de executar marginais em nome da defesa do bem estar e da segurança pública. 

Ou seja, em todos os sentidos o regime militar escalou a violência e o arbítrio. Violência que foi sendo desmobilizada à medida que a sociedade retomava seu espaço, com o declínio político dos militares e com o movimento de abertura e redemocratização. Mas a ditadura deixou profundas marcas na sociedade como um todo. Não só aos militantes que haviam caído nas teias da dura repressão aos movimentos políticos da oposição e da resistência armada e clandestina. As polícias militares, por exemplo, são um legado deste tenebroso período. O próprio corpo social, com tamanha desigualdade, com bolsões de miséria, pessoas à margem da sociedade, é sintoma de um longo período em que vicejou o pouco caso com os direitos democráticos da população, um sistemático desprezo pelos direitos humanos e pelo bem estar geral do povo.

Anistia e redemocratização

A Lei de Anistia, Lei nº 6.683, promulgada em 28 de agosto de 1979 durante o processo de abertura política, teve como resultado conceder anistia política tanto para aqueles que foram perseguidos e punidos pelo regime militar, quanto para os agentes do Estado que cometeram violações de direitos humanos durante esse período.

A Lei de Anistia foi um marco importante na transição do Brasil para a democracia, sem dúvida, pois permitiu o retorno ao país de exilados políticos, assim como a libertação de presos políticos que haviam sido detidos pelas autoridades militares. No entanto, a legislação também gerou naturais controvérsias, uma vez que concedeu anistia ampla e geral, sem fazer distinção entre os crimes políticos cometidos por agentes do Estado e aqueles que lutavam contra o regime. Essa abrangência da Lei de Anistia levantou questionamentos sobre a impunidade para os responsáveis por violações de direitos humanos durante o regime militar. Até hoje, a interpretação e aplicação dessa lei geram debates e demandas por justiça e reparação às vítimas desse período da história brasileira.

O problema da anistia em fins da década de 70 foi que os militares, de posse do poder, calculando que correriam o risco de serem punidos ao final do regime, fizeram toda a manobra política necessária para passarem uma lei que anistiasse os dois lados. Foram os presidentes militares que definiram o ritmo da abertura política, sobretudo Geisel e Figueiredo. Evidente que a ascenção do movimento operário do ABC paulista, do movimento estudantil, dos círculos artísticos, etc, todo o movimento democrático da sociedade, jogavam peso e competiam no sentido de acelerar a volta à democracia, de permitir o retorno dos exilados, de permitir o retorno à vida pública de tantos políticos e militantes cassados durante os primeiros anos de golpe militar. Todavia, eram os militares que estavam no poder. A última palavra era deles, e foram astutos em abrir o regime ao passo em que ameaçavam não anistiar os que classificavam como terroristas: os militantes que sequestraram embaixadores e assaltaram bancos. As esquerdas e o movimento democrático encamparam ações por uma anistia ampla e irrestrita, ao que os militares foram cedendo. E no final ficou todo mundo anistiado. Convencionou-se o entendimento de que as tratativas pela anistia envolviam crimes de ambos lados. Mas a esquerda, como bem tratamos acima, não lançou mão de métodos de tortura. Então concluí-se que os militares saíram ganhando. Foram desonestos, praticaram crimes contra a humanidade e ao cabo do regime de exceção se valeram de sua posição política para anistiar seus membros que incorreram no método sistemático e regular da tortura. Afora todo o arbítrio, de anos de um regime político que fez de tudo para usurpar direitos democráticos da nação.

E, também há que se dizer, os militares só aparentemente saíram de cena com a redemocratização do país. Ao longo de toda a Nova República mantiveram-se próximos ao poder político, em atitude que configura achaque político, ao passo em que mantiveram privilégios materiais e se hospedaram no condomínio do poder onde, às vezes mais, às vezes menos, ocuparam definitivamente uma posição de Minerva, de informal poder regulador, isto porque constituídos em armas e em natural condição de se sublevar caso quisessem. E quiseram com Jair Bolsonaro.

60 anos depois…

Sem dúvida que o entendimento que temos da história é bastante condicionado pelo momento político que vivemos. Não há como revisitarmos o golpe e o período da ditadura sem levarmos em consideração toda a questão política atual. E essa foi a nossa tônica ao longo destas páginas. Não poderia ser diferente. Entendemos assim. A conjuntura de golpes, tentativas de golpe, protagonismo militar na política e reacionarismo é, por assim dizer, uma repetição dentro de um ciclo em espiral que deve voltar a acontecer se o povo brasileiro não depurar a questão militar e a questão mais geral do desenvolvimento da luta de classes. 

Havia até poucos anos atrás o entendimento de que a democracia brasileira estava consolidada, e de que uma possível reedição da aventura militar seria algo muito pouco provável. Ledo engano, e que tão amargamente o povo brasileiro precisou constatar no desenrolar dos acontecimentos políticos que culminaram no impeachment imerecido de Dilma e na orquestração toda para limar Luís Inácio da disputa presidencial seguinte.

A partir daí os militares assumiram papel de destaque na política e de lá só foram sair porque seu candidato (e o próprio time militar) se envolveu em tamanho número de desentendimentos e gafes que sua situação política foi se tornando insustentável, o que ensejou o quadro do retorno petista ao poder. Dessa vez com menor margem de poder, numa coalizão de frente ampla, com o leque político ainda mais estendido que em 2002, e tendo que pisar em ovos no tratamento com os militares; o que Lula particularmente faz com muito jeito e habilidade. 

A questão militar é varrida para debaixo do tapete e pode voltar à pauta antes que se imagine. A questão da luta de classes tampouco será alvo de alguma intervenção. O possível imposto sobre grandes fortunas, o controle do capital de juros, do spread bancário, do serviço da dívida, e tantas outras questões que poderiam combater o que compõe o arcabouço do rentismo e da hiperacumulação, não serão tocados por este governo. 

Ainda há poucas semanas o presidente Lula disse que a questão da ditadura militar era coisa do passado e que não havia necessidade de se voltar a ela. Tentativa de apagamento histórico que veio justamente no sentido de colocar panos quentes sobre a discussão da sociedade em torno da memória histórica sobre o regime, em oposição às comemorações militares  que se dão a cada 31 de março. 

Ou seja, quer sobre a questão militar, mais particularmente, quer sobre a questão da secular estrutura social de desigualdades, o governo pouco fala. Sinal de que são questões que acirram os ânimos, que estão no âmago da situação nacional e que invariavelmente voltarão, posto que competem ao histórico quadro da formação nacional e subjazem no solo social da disputa entre capital e trabalho. 

A questão fica em aberto e, a depender do andamento das crises internacionais, de seus rebatimentos em território brasileiro, dos interesses imperialistas para o país, e de como internamente as coisas se darão, os 70 anos do golpe, daqui a 10 anos, poderão ser algo muito novo, com uma perspectiva que seja diferente da nossa. Muita coisa pode acontecer em 10 anos. Assim o temos constatado. Tudo o que é sólido desmancha no ar. De certo só sabemos que há questões em aberto. A ditadura militar brasileira é uma chaga aberta. De nossa perspectiva, do alto destes 60 anos, é o que podemos cravar. Os últimos acontecimentos, desta década particularmente, são a prova histórica disso.

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